Aconteceu quando ia a caminho da casa de banho. Era tarde e eu tinha-me levantado demasiado depressa da cama, criando um momento de ligeira tontura enquanto o sangue me voltava ao cérebro. E naquele momento, naquele relance de inconsciência, entendi. Percebi o que tinha de perceber, o que tinha de fazer. O que era a minha vida? Um nada que é o tudo, como diria Pessoa. Não havia feito nada que merecesse a mínima atenção do Fado, as minhas pegadas apagavam-se lentamente da face da Terra.
Olhei-me ao espelho. Estava velho, rugoso, áspero por dentro e por fora. Que me acontecera? Onde estava a criança que sonhava ser reconhecida, fugir ao efémero, enganar a morte como o grande Sísifo, meu ídolo? Os anos passaram e, embalado na suave melodia da mediocridade, nada fiz. Será que é tarde?
Voltei para a cama. De repente, o Mundo parecia frio e indiferente. Apercebi-me daquilo que fora a minha vida, daquilo que não havia feito e senti mágoa. Porque é que deixei os sonhos de lado? Porquê?! Senti um arrepio na espinha, e enrolei-me nos cobertores. Sentia-me protegido do meu falhanço. Mas, lá dentro, mesmo no meu âmago, o burburinho da angústia reinava. Pensei no que havia de fazer. E, mais uma vez, entendi o que fazer. Nunca é tarde, nunca podemos desistir, por mais artroses que tenhamos. Levantei-me e peguei nos meus manuscritos antigos, consumidos pelo pó, que esperavam ansiosamente no seu túmulo por esta iluminação aleatória. Sentei-me e escrevi.
Escrevi até a mão me doer e voltei a escrever até os meus calos me doerem. Com isto se passara a noite toda. A manhã chegara e eu não conseguia parar, pensando, mais por desespero que por outra coisa, que esta minha súbita ânsia iria compensar todos os anos de inutilidade.
Parei, finalmente. Olhei para o que tinha escrito e senti orgulho. Não entendi porque não persegui o meu sonho, não entendo porque não busquei a glória através das palavras. Agora vou atrás do meu sonho. Agora, vou viver!