quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Acordar


            Aconteceu quando ia a caminho da casa de banho. Era tarde e eu tinha-me levantado demasiado depressa da cama, criando um momento de ligeira tontura enquanto o sangue me voltava ao cérebro. E naquele momento, naquele relance de inconsciência, entendi. Percebi o que tinha de perceber, o que tinha de fazer. O que era a minha vida? Um nada que é o tudo, como diria Pessoa. Não havia feito nada que merecesse a mínima atenção do Fado, as minhas pegadas apagavam-se lentamente da face da Terra.
            Olhei-me ao espelho. Estava velho, rugoso, áspero por dentro e por fora. Que me acontecera? Onde estava a criança que sonhava ser reconhecida, fugir ao efémero, enganar a morte como o grande Sísifo, meu ídolo? Os anos passaram e, embalado na suave melodia da mediocridade, nada fiz. Será que é tarde?
            Voltei para a cama. De repente, o Mundo parecia frio e indiferente. Apercebi-me daquilo que fora a minha vida, daquilo que não havia feito e senti mágoa. Porque é que deixei os sonhos de lado? Porquê?! Senti um arrepio na espinha, e enrolei-me nos cobertores. Sentia-me protegido do meu falhanço. Mas, lá dentro, mesmo no meu âmago, o burburinho da angústia reinava. Pensei no que havia de fazer. E, mais uma vez, entendi o que fazer. Nunca é tarde, nunca podemos desistir, por mais artroses que tenhamos. Levantei-me e peguei nos meus manuscritos antigos, consumidos pelo pó, que esperavam ansiosamente no seu túmulo por esta iluminação aleatória. Sentei-me e escrevi.
Escrevi até a mão me doer e voltei a escrever até os meus calos me doerem. Com isto se passara a noite toda. A manhã chegara e eu não conseguia parar, pensando, mais por desespero que por outra coisa, que esta minha súbita ânsia iria compensar todos os anos de inutilidade.
Parei, finalmente. Olhei para o que tinha escrito e senti orgulho. Não entendi porque não persegui o meu sonho, não entendo porque não busquei a glória através das palavras. Agora vou atrás do meu sonho. Agora, vou viver!

Aventurado foi

Aventurado foi
Este coração, num Mundo
Ao qual não pertence,
Buscando libertar-se
Destas amarras infernais...

Sorrindo, acenando,
Fujo à chuva
Que me tira a máscara,
Que me desnuda,
Me enfraquece aos olhos do Mundo...

Sou falso, sou errado,
Quero sê-lo,
Com medo de ser inteiro,
Verdadeiro,
Todo na minha essência...

Às vezes

Às vezes, o coração pede lágrimas
E elas não chegam...
Estão lá, prontas a libertar-se
Em rios de tumultuosa angústia,
Mas não saem,
Secam só de pensar...

Às vezes, o coração pede calor
E o frio é o que recebe...
Na noite gelada e
Inóspita da nossa existência,
Faz falta algum refúgio,
Que os outros teimam em não dar.

Às vezes, eu penso em fugir
Deste meu carente coração.
Que tanto pede e pouco recebe,
Que quer sempre mais,
Sabendo que o pouco que tem
É aquilo que lhe faz bem...

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Autobiografia

               Com traços tipicamente mediterrânicos, vim a este mundo. Não serei um verdadeiro espécime de homem mediterrânico, serei talvez um híbrido entre a tez escura dos mouros e a tez alva dos bárbaros, povos que outrora dominaram o nosso cantinho à beira-mar. Com olhos castanhos, quase pretos (que não espelham a minha alma), escondidos atrás de uns óculos, cabelo castanho-escuro, num penteado despenteado “à la Beatles”, e barba negra cerrada, existente não como fruto de uma liberdade estética, mas sim fruto de uma preguiça que me assola todas as manhãs ao arrastar-me para fora da cama, enfrento os olhares dirigidos à minha pessoa. O meu nariz não será grande orgulho, mas será grande, assim como a minha boca, que se abre num sorriso quase de orelha a orelha (quase, pois a totalidade seria uma patologia). O meu queixo apresenta uma linha definida, típica do homem latino e que lhe confere uma imponência fora do comum. Obviamente que estou apenas descrevendo o rosto, o frontispício, a primeira zona de contacto com os outros.
            Seguidamente, as pessoas tendem a avaliar o resto do conjunto. Aqui, começam as verdadeiras diferenças para o homem mediterrânico, o “macho latino”. Com um metro e oitenta centímetros, sou ligeiramente mais alto que a maioria dos meus conterrâneos. Contudo, essa minha altura ligeiramente superior não é acompanhada pelo resto de corpo, em termos de desenvolvimento muscular. Não que eu seja um magricelas, um palito. Pelo contrário, começo a ganhar uma barriga (pequenina ainda), pouco saudável para a minha idade, mas bastante natural para a nossa sociedade. Sou um rapaz bastante alvo, levando várias pessoas a pensar que estou constantemente maldisposto ou que sofro de anemia. Tenho umas mãos longas, com dedos finos, próprios de um pianista, mas desperdiçados em mim, que não possuo o dom de teclar as peças do piano ou qualquer instrumento dele derivado.  A minha aparência poderá ser resumida nestas características, apesar de as partes não fazerem o todo. Não obstante, existe uma característica que eu considero que se destaca, que efectivamente me torna diferente: a minha ligeira curvatura em direcção ao solo, vulgo, corcunda.
            Não falo de uma corcunda gigante, uma corcunda em miniatura, mais fruto de uma condicionante psicológica do que física. Porque estas estão intimamente ligadas. Assim, a minha curvatura será uma protecção, uma forma de fugir a várias mágoas que são inevitáveis ao longo da nossa vida. Não é, nem de longe nem de perto, a característica de que mais me orgulho. Mas é, a meu ver, a que melhor me representa. Porque mostra o poder da mente sobre o corpo, as ligeiras fugas de informação subconsciente que brotam até à superfície do nosso corpo. Porque me mostra, sem eu me aperceber, aquilo que sou e o que sinto. Ou isso, ou será um problema de costas.